Capítulo 2
Quem foi?
O dia amanheceu nublado. Uma espessa névoa branca cobria o lago em frente à casa e se espalhava por todo o jardim deixando o ambiente sombrio e lúgubre. Bem diferente do tempo claro que fizera no dia anterior.
Ana-Lucia ingeriu um longo gole de café morno e suspirou preguiçosa. Usava uma das camisas do marido por cima da camisola e meias grossas também dele, de jogador de futebol, numa tentativa de aplacar o frio. Checou o relógio de parede da cozinha, eram quase sete da manhã e ainda parecia noite por causa da neblina. Ela precisava acordar as crianças e levá-las para a nova escola na cidade. Só de pensar que teria de dirigir por cerca de uma hora ou mais por causa da neblina, Ana sentia vontade de voltar correndo para a cama, fazer amor com o marido e dormir o dia inteiro.
Criando coragem para começar o dia depois de uma xícara de café, ela desligou o botão do fogão que mantinha o café aquecido, serviu uma caneca para James e subiu as escadas. Encontrou-o no quarto trocando a fralda de Liam.
- Bom dia, amor.- ela disse se aproximando dele com a caneca de café fumegante nas mãos.
- Bom dia, baby.- ele respondeu. – Levantou tão cedo. Não sei como percebeu que já era dia com toda essa neblina.
- Pois é, deixei o despertador ligado, as crianças precisam ir pra escola.
- Eu não escutei o despertador.- retrucou ele.
- Isso é porque você é um dorminhoco.- ela o beijou carinhosamente na face e estendeu-lhe o café. – Tome, está muito frio, o café vai te aquecer. Deixa que eu termino de trocá-lo.
- Eu sei de um jeito melhor pra me aquecer do que café!
Ana sorriu e debruçou-se sobre o bebê fofinho, beijando a barriguinha dele.
- Nenê fofo da mamãe!
- Isso foi pra mim?- James gracejou e Ana o empurrou com os quadris, brincando.
- Vá acordar as crianças, James, ou então eles irão se atrasar. As aulas não começam às nove?
James saiu do quarto e foi direto para o quarto de Jordan. Encontrou o garoto adormecido, mas com os fones do mp3 nos ouvidos.
- Soldado!- ele disparou e o menino se remexeu assustado na cama, fitando-o com os olhos arregalados.
- Pai?- Jordan indagou, ainda tentando se situar no tempo e no espaço.
- O que foi que eu e sua mãe dissemos sobre dormir com os fones de ouvido?
Jordan tirou os fones e disse:
- Desculpa pai, eu tava ouvindo música ontem à noite e acabei dormindo. È que ouvi uns barulhos esquisitos vindos lá de fora.
- Que tipos de barulhos?- perguntou James. – Algum esquilo gigante tentou escalar a sua janela?
- Ah pai, não vem com essa história, eu não sou mais criança.
- Certo, meu pequeno adulto.- respondeu James, divertido. - Então me diga, que tipo de barulho ouviu?
- Não sei, parecia o som de uma corrente arrastando contra o chão.
- Correntes contra a grama? E você escutou?- James balançou a cabeça negativamente.
Jordan ficou chateado porque o pai estava brincando com ele e sentou-se na cama, de braços cruzados.
- Hey, desculpe por estar brincando com você, filho.- disse ele passando a mão na cabeça do garoto. – Acho que vamos ter que proibir os filmes de terror que você gosta tanto de assistir não é? Anda, vá tomar um banho quente e vista-se para a escola. Escola nova...
O menino assentiu mais animado e James foi até o quarto da filha para acordá-la. Porém, encontrou-a sentada na cama, com o coelhinho de pelúcia desbotado nos braços, muito desperta e falando sem parar, sozinha.
- Mi?- ele a chamou e a menina sorriu para ele com espontaneidade.
- Oi, papai.
- Com quem está falando, princesa?- ele indagou, curioso.
- Com a Daphne, papai.
- Daphne?
- È, ela é minha nova amiga.- Michelle respondeu. – Foi ela quem me deu o coelhinho.
- Oh, mas que gentil da parte dela.- James concordou. Sua filha tinha apenas cinco anos e ele ouvira falar em algum lugar que era comum as crianças terem amigos imaginários nessa idade, embora Jordan, apesar de ter dez anos, ainda parecia conviver com todos os seus amigos imaginários, especialmente quando se trancava em seu precioso laboratório de invenções.
- È pai, ela é muito legal.- acrescentou Michelle, realmente empolgada com a nova “amizade”.
- Tudo bem, querida. Mas diga à Daphne que você precisa tomar banho e se aprontar para ir à escola agora, está bem?
- Sim.- a menina asssentiu e levantou-se da cama começando a despir o pijama quente de flanela, se queixando do frio quando tirou a parte de cima. – Está frio, papai!
- Então não vamos demorar no banho.- disse ele, abrindo o closet e procurando roupas quentes para a menina.
Vinte minutos mais tarde, estavam todos prontos para tomar o café da manhã e enfrentar o frio. Porém, quando desciam a escada, James sentiu um cheiro forte de gás vindo da cozinha.
- Está sentindo isso?- indagou a Ana.
Ela apurou o nariz e também sentiu.
- È gás!
- Fiquem aqui!- ele pediu e desceu correndo as escadas em direção à cozinha, de onde vinha uma estranha fumaça cinza.
- James!- Ana gritou, com medo de que ele entrasse naquela fumaça.
Mas cinco minutos depois ele voltou com uma expressão séria e preocupada no rosto.
- O que houve?- Ana indagou.
- O fogão.- respondeu ele. – Todas as bocas estavam ligadas sem cozinhar nada e o controle do gás estava acionado no máximo. Ana-Lucia, você fez isso quando preparou o café?
- O quê?- ela retrucou. – È claro que não. Por que eu acenderia todas as bocas do fogão para preparar café? E por que ligaria o gás no máximo?
- Está muito frio...
- Ora James, me poupe! Me lembro perfeitamente de ter desligado o fogão antes de subir para falar com você.
James balançou a cabeça negativamente.
- Se não quer admitir, tudo bem! Mas sinceramente tem que ter mais cuidado com o fogão, colocou em risco a vida de nossos filhos.
Ana-Lucia ficou irritada e desceu as escadas acompanhada pelas crianças que fitavam os pais com receio. Nunca os tinham visto brigar daquele jeito, pelo menos não na frente deles e agora os dois estavam gritando.
- Não venha me dizer como devo cuidar dos meus filhos.- Ana gritou.
Liam chorou no colo da mãe e James o tirou dos braços dela.
- Vou levar o bebê para pegar um pouco de ar lá fora, esse cheiro de gás não está fazendo bem a ele. E vê se não liga o fogão agora, é melhor dar leite em temperatura ambiente para as crianças.
Ana o fuzilou com os olhos, mas nada disse a ele. Em vez disso, chamou as crianças:
- Venham, vamos comer ou então chegarão atrasados à escola.
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Ana-Lucia ainda estava irritada quando pegou a estrada com os filhos para a cidade. Mas tentou esquecer a discussão com o marido para se concentrar na estrada à sua frente. A neblina tornava difícil dirigir e ela tinha que estar atenta para não capotar e enterrar o carro no pântano.
Era tão estranho. Tinha certeza de que desligara o fogão. Era muito cuidadosa com essas coisas, até demais. Percebeu que os filhos estavam muito quietos no banco de trás e sentiu-se culpada pela discussão com James. Não deviam ter brigado daquela maneira na frente dos filhos.
- Hey, crianças. Perdoem o papai e a mamãe pelos gritos hoje cedo. O papai apenas estava preocupado com a nossa segurança.
- Mas por que todas as bocas do fogão estavam ligadas, mamãe?- Jordan perguntou curioso, sua mente de pequeno cientista já maquinando a respeito do ocorrido.
- Eu não sei, querido. Talvez o fogão esteja com defeito.
- Mas não estava com defeito na nossa antiga casa.- o menino lembrou.
- È, mas pode ter danificado durante a mudança. Acho que devemos chamar um técnico para dar uma olhada.
- A Daphne me disse que não foi ela.- disse Michelle com seriedade.
- Daphne?- indagou Ana.
- Sim, minha nova amiga. Ela mora lá na nossa nova casa.
- Que bom!- disse Ana, pensando consigo, ok, fase dos amigos imaginários! Mas a do Jordan ainda não passou.
- Vou dar uma olhada no fogão, mamãe.- disse ele.
- Nem pensar!- falou Ana. – Fiquei longe daquele fogão.
A neblina começou a se tornar mais e mais densa, e Ana-Lucia estava encontrando cada vez mais dificuldade para dirigir. Seu celular começou a tocar dentro do porta-luvas. Ana deixou uma das mãos no volante e com a outra atendeu ao celular pensando ser James. Mas não era. Era sua melhor amiga, Kate, ligando de Los Angeles.
- Sua vaca!- soou a voz animada de Kate do outro lado da linha. – Quando é que pretendia me ligar para falar sobre como foi a mudança?
- Desculpe, amiga. Realmente não tive tempo. A casa é enorme. Passamos o dia inteiro para pôr as coisas no lugar e agora estou dirigindo, levando as crianças para a nova escola. Você acredita que são 30 quilômetros até a cidade?
- Você é louca, Ana! Não sei como James e você resolveram se mudar para um lugar tão longe!
- Ah, morar no campo pode ter suas vantagens.- Ana acrescentou um tom malicioso à voz. – Além disso, a casa tem muito espaço para as crianças brincarem e correrem, o Vincent também está feliz.
- A casa deve ser linda!- disse Kate.
- È sim. Você e o Jack precisam vir passar um final de semana conosco, trazer as meninas. A Billie ia adorar construir uma casa na árvore com o Jordan. Você sabe, qualquer coisa para tirá-lo daquele laboratório.
- Sim, vamos combinar. Iríamos adorar.
- Kate, amiga, preciso desligar agora, o tempo está terrível hoje, nublado, mal enxergo a estrada.
- Tudo bem. Cuide-se. Amo você.- falou Kate e dizendo o mesmo, Ana desligou o telefone.
Agora a neblina parecia que engoliria a picape. Ana já estava quase parando o carro na estrada até que a névoa se dissipasse mais quando de repente, ela viu um homem muito alto parado no meio da estrada, acenando os braços para o carro.
- Oh!- ela exclamou, sentindo os pedais duros, não conseguia parar e o carro derrapou na estrada quando ela virou o volante para não atropelar o homem. – Meu Deus!- ela gritou, junto com as crianças no banco de trás.
Ana pisou no pedal com muita força para parar o carro até sentir seus ossos estalarem. Foi quando viu no espelho retrovisor o mesmo homem. Mas dessa vez ele parecia estar tão próximo que Ana pôde ver seus olhos, estranhamente vermelhos. Sentiu um desconforto no peito, e girou a chave do carro para o lado contrário na ignição, querendo que o veículo parasse.
O carro finalmente parou e os olhos vermelhos e medonhos do homem desapareceram. Ana enterrou a cabeça no volante, a respiração entrecortada. Michelle chorava alto no banco de trás e Jordan parecia estranhamente quieto.
Ana-Lucia respirou fundo e soltou o cinto segurança, descendo do carro para ir ver os filhos no banco de trás.
- Crianças! Vocês estão bem?- quando ela abriu a porta, Michelle jogou-se no colo dela, soluçando, muito assustada.
Ana enxugou o suor frio da testa e abraçou a filha, dizendo que ia ficar tudo bem. Olhou para Jordan, recostado ao vidro do carro com olhar assustado. Aos seus pés estava todo o café da manhã que ele tinha vomitado.
- Mi, baby, mamãe tem que olhar o seu irmão agora, tá?- disse Ana para a filha, acariciando seus lisos cabelos negros. – Vai ficar tudo bem.
A menina assentiu e soltou o casaco da mão que estivera agarrando nos últimos minutos.
- Jordan, querido, você está bem?
O menino balançou a cabeça, assentindo, tentando limpar as lágrimas que lhe escorriam dos olhos.
- Não precisa ser tão durão, querido. Tudo bem se vomitou, o carro estava indo muito depressa. A neblina atrapalhou e fez com que eu perdesse o controle. Mas já está se dissipando, olha só!
Jordan olhou pela janela do carro e finalmente pôde enxergar o céu azul. A neblina estava se dissipando.
- E aquele homem, mamãe?
Ana-Lucia sentiu o sangue congelar nas veias ao ouvir o menino falar do homem que ela também vira. Mas preferiu negar a informação. A neblina podia pregar peças nas pessoas.
- Não tem homem nenhum, querido. Está tudo bem. Mamãe vai limpá-lo.
Ela pegou a caixa de lenços no porta-luvas, limpou o filho e depois foi checar o carro. Tudo parecia em ordem. Sem mais nada a fazer, ela entrou no carro e continuou seu caminho em direção à cidade.
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- O Liam é o bebê do papai... – James cantarolava uma música que tinha inventado para o filho que o fazia sorrir enquanto dava banho nele.
O menino batia as mãozinhas na água, dando gritinhos, feliz por estar tomando banho na água morna.
- Isso, agora o papai vai te enxugar.
James pegou a toalha com estampas de cachorrinho que estava pendurada atrás da porta do banheiro e tirou o filho da banheirinha azul, envolvendo-o com o tecido felpudo. Pensou em Ana e sentiu-se culpado por ter gritado com ela. Mas a distração com o fogão tinha sido muito perigosa, ou talvez ela estivesse dizendo a verdade e o fogão estava mesmocom defeito. Tinha que averiguar isso.
Levou Liam para o quarto, o enxugou e vestiu. Dando o mingau a ele na mamadeira em seguida. O menino ficou bem quietinho no colo do pai até que terminasse todo o mingau. Aproveitando que Liam estava sonolento, James o embalou até que ele adormecesse e depois o colocou no berço.
Tinha que pedir desculpas a Ana, pensou. Esta noite faria um delicioso jantar e depois eles poderiam dar uma volta de barco à beira do lago. Ficou feliz ao olhar pela janela e ver que a neblina já tinha se dissipado dando lugar à luz do sol, ainda que um pouco fraca por causa do inverno.
Como Liam estava dormindo, James aproveitou para trabalhar um pouco no novo software para empresas de supermercado que estava criando. Deixou a babá eletrônica ligada e desceu a escada com Vincent em seus calcanhares rumo ao seu escritório onde estava seu computador e todo o seu aparato de informática. Colocou o aparelho de recepção da babá eletrônica ao seu lado e pôs-se a trabalhar no laptop.
O software que estava criando se tratava de um programa que aumentaria o nível de segurança dos computadores das empresas, impedindo que espiões de empresas concorrentes tivessem acesso a informações secretas. Trabalhou por cerca de meia hora sem interrupções, respondeu alguns e-mails, entre eles, um de Jack, seu melhor amigo que perguntava como estavam indo as coisas na Geórgia quando a luz vermelha da babá eletrônica piscou e o choro de Liam se fez ouvir. Alto e claro.
- Certo. Já estou indo.- ele disse, colocando o laptop no modo “dormir”.
Subiu as escadas e Vincent o seguiu mais uma vez. Andou apressado até seu quarto onde o bebê dormia, mas estranhamente, Liam não chorava. James se aproximou do berço e viu o filho dormindo tranqüilo. Olhou para a babá eletrônica e a luz vermelha não estava acionada. Mas tinha certeza que o ouvira chorar.
Checou a fralda para ver se estava molhada, mas o bebê estava seco. Talvez tivesse choramingado e voltado a dormir, dizia sua mente lógica e racional. O problema é que o choro que ele ouvira na babá eletrônica tinha sido um choro angustiado e desesperado.
James então resolveu que o melhor a fazer era buscar o laptop e trabalhar no quarto, perto do filho. Estava voltando pelo corredor em direção às escadas quando sentiu um cheiro fétido vindo da central de ventilação da casa. Vincent começou a latir na direção da onde vinha o cheiro.
Intrigado, James abaixou-se em frente ao buraco coberto com uma grade e sentiu o estômago revirar. Será que havia um gato morto ou até mesmo um guaxinim nos encanamentos? Estava pensando sobre isso quando seu celular tocou no bolso da calça jeans. Era Ana.
- Hey, baby.- ele disse, um pouco inseguro por causa da discussão que tiveram pela manhã.
- Oi, meu amor. – ela respondeu carinhosa e James relaxou. – Tive um pequeno acidente na estrada por causa da neblina. – ele voltou a ficar tenso.
- Acidente?
- Sim, mas nenhum de nós se machucou. Eu perdi o controle na estrada e tive que parar de súbito. As crianças ficaram muito assustadas. Principalmente o Jordan, ele vomitou no carro e você sabe como ele é, não gosta de parecer frágil...
- Onde as crianças estão agora?
- Na escola. Resolvi que seria melhor elas irem, agir normalmente apesar do acidente.
- Fez bem.
- Eu queria que você conversasse com o Jordan hoje à noite.
- Sim, eu vou falar com ele, não precisa ficar preocupada.
Ambos ficaram em silêncio ao telefone por alguns momentos, até que falaram ao mesmo tempo:
- Sinto muito!
James sorriu.
- Baby, me desculpe por ter gritado hoje de manhã, é que fiquei muito preocupado...
- Eu sei! Me perdoa por ter gritado também.
- Eu te amo!- ele disse.
- Eu te amo também, James. O Liam está bem?
- Está sim, está dormindo e já tomou o mingau.
- Te vejo mais tarde.
- Um beijo na sua boca linda.
Ana riu e fez barulho de beijo ao telefone, desligando em seguida. Com o celular nas mãos, James olhou para Vincent:
- È isso aí, amigo! Vamos jogar um detergente nesse buraco. Operação limpeza!
O cão latiu como se estivesse concordando com ele.
- Acho que amanhã vou dar uma olhada nesses canos!
James virou de costas e não viu quando uma pequena quantidade de fumaça negra e espessa, cheirando a enxofre escapou da abertura da central de ventilação.
Continua...